sábado, 3 de fevereiro de 2007

Foro de São Paulo, versão anestésica - Olavo de Carvalho

DC, 15 jan. 2007

O Foro de São Paulo, versão anestésica

Olavo de Carvalho



Depois de esconder por dezesseis anos a existência da mais poderosa entidade política latino-americana, a mídia chique deste país, vencida pela irrefreável divulgação dos fatos na internet, trata agora de disfarçar, como pode, o mais torpe e criminoso vexame jornalístico de todos os tempos. O expediente que usa para isso é ainda mais depravado: caluniar, difamar, sujar a reputação daqueles poucos que honraram os deveres do jornalismo enquanto ela não se ocupava senão de prostituir-se, vendendo silêncio em troca de verbas estatais de propaganda. Envergonhada de si mesma, ela não tem nem a dignidade de citar nominalmente essas honrosas exceções. Designa-as impessoalmente, fingindo superioridade, mediante pejorativos genéricos. O mais comum é “radicais de direita”. Encontro-o de novo no artigo “Os limites de uma onda esquerdista”, assinado por César Felício no jornal Valor no último dia 12. O autor é uma nulidade absoluta, e eu jamais comentaria uma só linha da sua fabricação se as nulidades não se tivessem tornado, num jornalismo de ocultação, os profissionais mais necessários e bem cotados. Por favor, não me acusem de caçar mosquitos. Compreendam o meu drama: nas presentes circunstâncias, a recusa de falar de nulidades me deixaria totalmente desprovido de material nacional para esta coluna. A primeira coisa que tenho a dizer a esse moleque é bem simples: Radical de direita é a vó. Antigamente chamava-se por esse qualificativo o sujeito que advogasse a matança sistemática de comunistas como os comunistas advogam e praticam a matança sistemática de populações inteiras. Hoje em dia, para ser carimbado como tal, basta você ser contra o aborto ou o casamento gay. Basta você achar que o Foro de São Paulo existe e é perigoso. Basta você fazer as contas e notar que centenas de prisioneiros morreram de tortura na Guantanamo cubana e nenhum na americana. Basta você apelar à matemática elementar e concluir que a guerra do Iraque matou muito menos gente do que o regime de Saddam Hussein sob os olhos complacentes da ONU. Se você incorre em qualquer desses pecados mortais, lá vem o rótulo infamante grudar-se na sua pessoa indelevelmente, como marca de escravo fujão ou ferrete de gado. E não vem por via de nenhum jornaleco de partido, de nenhum panfleto petista. Vem pela Folha de São Paulo, pelo Globo, pelo Estadão, pelo jornal Valor – os órgãos da burguesia reacionária, segundo o site oficial do PT. Que é que posso concluir disso, objetivamente, senão que a esquerda radical conseguiu impor à grande mídia a sua escala de mensuração ideológica e o correspondente vocabulário, agora aceitos como opinião centrista, equilibrada, mainstream, enquanto as opiniões que eram da própria grande mídia ontem ou anteontem já não podem ser exibidas ante o público porque se tornaram politicamente incorretas? Será extremismo de direita concluir que o eixo, o centro, se deslocou vertiginosamente para a esquerda, criminalizando tudo o que esteja à direita dele próprio? Será extremismo de direita concluir que a única direita admitida como decente na mídia chique é o tucanismo – abortista, gayzista, quotista racial, desarmamentista, politicamente corretíssimo, padrinho do MST e filiado à internacional socialista, além de bettista e boffista, quando não abertamente anticristão? Será extremismo direitista notar que o traço mais saliente dessa direita bem comportadinha é a abstinência radical de qualquer veleidade anticomunista? Será extremismo de direita entender que esse fenômeno é a manifestação literal e exata da hegemonia tal como definida por Antonio Gramsci? Será extremismo de direita concluir que o establishment midiático deste país é, no seu conjunto, um órgão da esquerda militante mesmo nos seus momentos de superficial irritação antipetista, quando jamais proferiu contra o partido dominante uma só crítica que não viesse de dentro da esquerda mesma e que não fosse previamente expurgada de qualquer vestígio de conteúdo ideológico direitista? Qualquer pessoa intelectualmente honesta sabe que um juízo de fato não pode ser derrubado mediante rotulação infamante. Tem de ser impugnado pelo desmentido dos fatos. Se quiser rotulá-lo, faça-o depois de provar que é falso. Não antes. Não em substituição ao desmentido. Ora, o tal Felício, em vez de desmentido, fornece uma brutal confirmação. Vejam só: O grupo que se reúne a partir de hoje em San Salvador... atende pelo nome de ‘Foro de São Paulo’ e nasceu sob o patrocínio do PT, em 1990. Os encontros anuais não costumam chamar muita atenção, a não ser de certos radicais de direita no Brasil.”

Ora, como é possível que encontros esquerdistas anuais repetidos ao longo de uma década e meia, com centenas de participantes, entre os quais vários chefes de Estado, não chamem atenção exceto de radicais de direita? Ninguém na esquerda prestou atenção ao Foro de São Paulo? O sr. Lula fez um discurso presidencial inteiro a respeito sem prestar a mínima atenção à entidade da qual falava? Antes disso, quando presidia pessoalmente as sessões da entidade até 2002, não lhes prestou nenhuma atenção? Entrava em transe hipnótico e balbuciava mensagens do além, sem se lembrar de nada ao despertar? Os jornalistas de esquerda que, às dezenas, compareceram aos debates, foram lá por pura desatenção, dormiram durante as assembléias e voltaram para casa sem coisa nenhuma para contar? O sr. Bernardo Kucinsky, um dos fundadores da entidade, que emocionado assistiu ao nascimento dela num encontro entre Fidel Castro e Lula, não prestou a mínima atenção àquele momento supremo da sua vida de militante esquerdista? Pago com dinheiro público para relatar aos eleitores os atos presidenciais, calou-se por mera distração, e também por mera distração guardou os fatos para contá-los depois no seu livro de memórias, onde só os colocou porque não tinham a mínima importância?

Ora, menino bobo, você não sabe a diferença entre a desatenção e a atenção extrema acompanhada de um propósito deliberado de ocultar? Que você seja desprovido do senso da verdade, vá lá. Sem isso não se sobe no jornalismo brasileiro. Mas será que você precisa também desprover-se do senso do ridículo ao ponto de tentar minimizar a importância do Foro e logo em seguida, citando documento oficial da entidade, alardear que “na primeira reunião do grupo, em 1990, os integrantes estavam no governo em um único país: Cuba. Hoje desfrutam o poder na Venezuela, Brasil, Bolívia, Nicarágua, Argentina, Chile, Uruguai e Equador”?

Você acha mesmo que a organização que planejou e dirigiu a mais espetacular e avassaladora expansão esquerdista já observada no continente é um nada, um nadinha, no qual só radicais de direita ou teóricos da conspiração poderiam enxergar alguma coisa?

Na verdade, o próprio Felício enxerga ali alguma coisa. Ele cita o documento oficial: “Passamos a controlar uma cota de poder, mas as outras cotas continuam sob controle das classes dominantes. Os chamados mercados, as grandes empresas de comunicação, os setores da alta burocracia do Estado, os comandos centrais das Forças Armadas, os poderes Legislativo e Judiciário, além da influência dos governos estrangeiros, competem com o poder que possuímos.”

Ou seja: a entidade que já domina os governos de nove países não admite, não suporta, não tolera que parcela alguma de poder, por mais mínima que seja, esteja fora de suas mãos. Nem mesmo as empresas de comunicação e o judiciário, sem cuja liberdade a democracia não sobrevive um só minuto. Com a maior naturalidade, como se fosse uma herança divina inerente à sua essência, o Foro de São Paulo, com a aprovação risonha do nosso partido governante, reivindica o poder ditatorial sobre todo o continente.

Felício lê esse documento assim: “Os limites a um poder absoluto parecem incomodar os participantes do encontro.” Parecem, apenas parecem. Quem ficaria alarmado com aparências, senão radicais de direita? Afinal, eles vivem enxergando comunistas embaixo da cama, não é mesmo?

Para tranqüilizar a população, Felício trata de lhe mostrar que no Foro não há socialismo nenhum, apenas o bom e velho populismo nacionalista, tão difamado pelos agentes do imperialismo. “Um mesmo discurso estava presente na oposição a Perón e a Getúlio nos anos 40 e 50. Reapareceu, quase igual, no tipo de ataque recebido ano passado por Lopez Obrador no México e Evo Morales na Bolívia.

A circunstância de que, ludibriados por milhares de Felícios, até membros da oposição temam dar nome aos bois, preferindo falar de “populismo” em vez de comunismo, é usada como prova de que o Foro não é uma organização comunista. O fato é que as idéias e as pessoas dos velhos populistas jamais aparecem citadas nos documentos do Foro como exemplos a ser imitados. Ao contrário, os apelos à tradição revolucionária comunista ressurgem a cada linha, com todos os seus heróis e símbolos, com todos os cacoetes lingüísticos medonhos do jargão marxista-leninista mais típico e obstinado, acompanhados da declaração explícita, infindavelmente repetida, de que a meta é o socialismo. Mas, decerto, todos os participantes do Foro, todos aqueles tarimbados militantes revolucionários treinados em Cuba, na China e na antiga URSS, estão equivocados quanto à sua própria ideologia e metas. Eles apenas pensam que são comunistas, socialistas, marxistas. Felício é quem, penetrando com seus olhos de raios-x no fundo das almas deles, sabe que não são nada disso. São getulistas que se ignoram.

A prova? Ele não se recusa a fornecê-la. É esta: “Antes de ser uma verdadeira marcha ao socialismo, a ofensiva de Chávez... sugere a coroação de um processo de concentração de poder”.

Entenderam a lógica profunda? Se é concentração de poder, não é socialismo. Pena que ninguém avisou disso Marx, Lênin, Stalin, Mao, Fidel e Che Guevara. Todos eles sempre entenderam, ao contrário, que a concentração de poder é a única via para o socialismo, é a essência mesma do processo revolucionário. Mas talvez estivessem enganados, tanto quanto a turminha do Foro. Quem entende do negócio é César Felício.

No tempo em que havia jornalismo no Brasil, um sujeito como esse não seria designado para cobrir nem partida de futebol de botão. Hoje ele é uma espécie de modelo, reproduzido às centenas em todas as redações. O resultado é óbvio. Faça um teste. Segundo pesquisa da Folha de São Paulo, a opinião majoritária dos brasileiros é acentuadamente conservadora. É contra o casamento gay, contra o aborto, contra as quotas raciais, contra o desarmamento civil. É contra tudo o que os Felícios amam. É até a favor da pena de morte para crimes hediondos. E confia infinitamente mais nas forças armadas do que na classe jornalística que as difama sem cessar. Quantos jornalistas, nas redações das empresas jornalísticas de grande porte, se alinham com essa opinião majoritária? Não fiz nenhuma enquete, mas, por experiência pessoal, afirmo: poucos ou nenhum. A leitura diária dos jornais confirma isso da maneira mais patente.

A opinião pública brasileira não é refletida nem representada pela grande mídia. Não tem direito a voz, a não ser por exceção raríssima concedida a algum colaborador ocasional só para depois ser exibida como exemplo de aberração extremista, felizmente compensada pela pletora de articulistas serenos, normais e equilibrados que igualam George W. Bush a Hitler e Abu-Ghraib a Auschwitz.

A idéia mesma de que uma mídia só pode ser equilibrada quando reflete proporcionalmente a divisão das correntes de opinião no país já desapareceu por completo da memória nacional. O simples ato de enunciá-la tornou-se prova de direitismo radical. Resultado: a elite microscópica de tagarelas esquerdistas que domina as redações (não mais de duas mil pessoas) se permite tomar a sua própria opinião como medida da normalidade humana, condenando como patológicas e virtualmente criminosas as preferências gerais da nação.

Quem se coloca em tais alturas está automaticamente liberado de prestar quaisquer satisfações à realidade. Não quer conhecê-la, quer transformá-la. Para transformá-la, não é preciso mostrar os fatos às pessoas: é preciso alimentá-las de crenças imbecis que as induzam a se comportar da maneira mais adequada para favorecer a transformação. Da classe empresarial que lê o jornal Valor, que é que se espera? Que permaneça idiotizada e passiva, embriagada de falsa segurança, incapaz de mobilizar-se em tempo para se opor à onda revolucionária que vai submergindo o continente. Foi para isso que os Felícios lhe negaram por dezesseis anos o conhecimento do Foro de São Paulo. É para isso que, hoje, não podendo mais levar adiante a operação-sumiço, apelam à operação-anestesia, chamando-a, cinicamente, de jornalismo. E são pagos para fazer isso pelos próprios empresários de mídia, aqueles mesmos cujas empresas o Foro de São Paulo promete calar ou expropriar junto com todos os demais instrumentos de exercício da liberdade, num futuro mais breve do que todos imaginam.

Olavo de Carvalho - O mundo como jamais funcionou

DC, 11 dezembro 2006

O mundo como jamais funcionou
Olavo de Carvalho



Tenho diante de mim um exemplar de How The World Really Works, “Como o Mundo Realmente Funciona”, de Alan B. Jones (Paradise, CA, ABJ Press, 1996), que é muito badalado entre os estudiosos americanos de hierarquias secretas e poderes globais como uma boa e confiável introdução ao assunto. O título é uma sinédoque: não se trata do mundo em geral, mas da esfera político-social apenas, encarada sob o prisma da pergunta clássica de Ortega y Gasset: “Quem manda no mundo?” A chave do seu sucesso é a simplicidade do projeto, que, sem aspirar à mais mínima originalidade, busca resumir doze livros considerados importantes nessa área de estudos: A Century of War, de F. William Engdahl (1993), Tragedy and Hope, de Carrol Quigley (1996), The Naked Capitalist, de W. Cleon Skousen (1970), The Tax-Exempt Foundations, de William H. McIlhany (1980), The Creature From Jekyll Island, de G. Edward Griffin (1994), 1984, de George Orwell (1949), Report From Iron Mountain, vários autores, editado por Leonard Lewin (1967), The Greening, de Larry Abraham (1993), The Politics of Heroin, de Alfred W. McCoy (1991), Final Judgement, de Michael Collins Piper (1995), Dope, Inc., pelos editores da Executive Intelligence Review do sr. Lyndon LaRouche (1978, reed. 1992), e Let’s Fix América, do próprio Alan Jones (1994).

Não é preciso dizer que, com a possível exceção de 1984, um clássico literário que pode ser lido como pura ficção, e do material da E.I.R., que é divulgado também em boletins avulsos traduzidos em português, jamais encontrei entre líderes políticos, militares, empresariais ou midiáticos brasileiros quem houvesse lido esses livros. Também jamais encontrei um que não tivesse opiniões acabadas e taxativas a respeito do assunto, acompanhadas de uma tremenda indisposição de discuti-las.

Mas, mesmo supondo-se que alguma dessas criaturas onissapientes houvesse lido os doze, ou pelo menos o resumo aqui considerado, ainda assim estaria muito mal aparelhada para saber quem manda no mundo, pois a seleção feita por Alan Jones é deficiente sob muitos aspectos.


Desde logo, a escolha privilegia alguns títulos de segunda mão em vez das fontes essenciais. The Naked Capitalist, por exemplo, é apenas uma boa obra de polêmica que nada acrescenta às pesquisas volumosas e pioneiras do economista inglês Anthony Sutton. Sutton começou estudando a ajuda militar americana à URSS durante a II Guerra Mundial e acabou descobrindo que toda a indústria pesada soviética era uma fachada de papelão só mantida em pé pela força do dinheiro ocidental. Espantado, pôs-se a investigar por que os maiorais das finanças nos EUA haviam gastado tanto só pelo prazer de fornecer ao seu país “o melhor inimigo que o dinheiro podia comprar” (The Best Enemy Money Can Buy, título de um de seus melhores livros). De quebra, descobriu que ajuda igualmente generosa havia escoado para o III Reich, comprando não só um inimigo, mas dois. No intuito de resolver o enigma, passou a estudar as origens históricas da elite americana. Por pura sorte, vieram parar nas suas mãos os documentos originais de uma sociedade secreta fundada no século XIX, mas ainda em funcionamento, que reunia as famílias mais ricas e poderosas dos EUA. Sutton acrescenta à inflexível probidade científica um irritante comedimento britânico. Ele reproduz esses documentos
em An Introduction to “The Order” (1983) com o máximo cuidado de ater-se aos fatos e evitar conclusões precipitadas, mas toda essa precaução não impediu que a publicação do livro pusesse um abrupto ponto final numa brilhante carreira universitária. Qualquer que seja o caso, esse grande estudioso, que viveu uma das aventuras intelectuais mais fascinantes do século XX, foi muito odiado, xingado e amaldiçoado, mas jamais contestado formalmente. O leitor interessado em saber quem manda no mundo não pode se dispensar de ler os livros dele.
The Tax-Exempt Foundations, de William H. McIlhany (1980), é apenas uma extensão de Foundations: Their Power and Influence, de René A. Wormser (1958), que tem a vantagem de ser praticamente um traslado direto das conclusões da comissão parlamentar de inquérito chefiada pelo deputado B. Carroll Reece, incumbida de averiguar a ajuda fornecida por fundações isentas de impostos, como Rockefeller, Ford e Carnegie, a movimentos subversivos e totalitários. Os depoimentos prestados à comissão evidenciavam, já naquela época, a simbiose macabra do comunismo com o grande capital, que duas décadas antes o economista austríaco Ludwig von Mises havia explicado como natural e inevitável, mas que nas cabecinhas dos nossos compatriotas mais falantes continua soando como uma absurdidade inaceitável, já que brasileiro só acredita em palavras, não em fatos, e quando os sentidos dicionarizados de duas palavras se contradizem ele não admite que os fatos correspondentes possam coexistir na realidade. Comprovando em toda a linha a teoria de von Mises (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/060611zh.html), a Comissão Reece mostrou que o movimento comunista só existia nos EUA graças à generosidade de seus inimigos nominais. Ao longo dos cinqüenta anos seguintes, as fundações bilionárias não só continuaram vitaminando a subversão interna nos EUA, produzindo inclusive a resolução suicida do conflito vietnamita e o subseqüente genocídio no Vietnã e no Camboja, mas estenderam sua ajuda a praticamente todos os movimentos de esquerda no Terceiro Mundo e cobriram o planeta com uma rede de ONGs adestradas para promover “transformações sociais”. O modus operandi dessas ONGs é bastante uniforme. Primeiro, lançam uma moda cultural, subsidiando intelectuais para que a imponham nos meios universitários e jornalísticos como norma obrigatória e inquestionável, reprimindo por meio da chacota, da intimidação e do boicote profissional qualquer tentativa de discussão séria. Obtido o consenso da intelectualidade mais tagarela, o novo critério escolhido pela minoria iluminada contra as preferências óbvias da maioria da população é subitamente adotado pela totalidade da mídia como se fosse a tradução banal e improblemática da crença majoritária, tratando toda resistência como aberração mental isolada. Assim, por exemplo, no Brasil a população é maciçamente contra o aborto, mas a mídia nacional inteira fala dos anti-abortistas como se fossem tipos exóticos e anormais, teimosamente apegados a crenças antigas de há muito já abandonadas pela maioria saudável. Não é preciso dizer que, nessas condições, a imagem esquemática do mundo transmitida pelo jornalismo se transforma em pura inversão e fantasmagoria, criando um estado geral de alienação que, por si, é fonte de insegurança, conflitos sociais e desequilíbrios sem fim. A etapa final do processo é dar força de lei à opinião da elite iluminada, elevando da simples marginalização à criminalização explícita o tratamento dado aos descontentes. Da noite para o dia, a imagem postiça transforma-se em realidade oficial.

Esse é o processo legislativo geral e usual hoje em dia, transformando a democracia num pretexto nominal para a imposição tirânica das decisões de uma minoria ativista descarada e cínica. A imensurável cara de pau com que a ONU impõe o aborto como direito humano, penalizando toda oposição como crime comparável ao racismo, mostra que, na “democracia ampliada”, tão do gosto dos Bobbios, a coisa mais fácil do mundo é marginalizar e criminalizar a maioria.

Nos países do Terceiro Mundo, praticamente todas as novas leis que introduzem modificações sociais profundas vêm prontas da ONU ou diretamente das fundações bilionárias, e sua discussão pública é inteiramente pré-moldada para ater-se a aspectos gerais, formais e de princípio, evitando cuidadosamente tocar na questão substantiva do poder que as originou e das finalidades a que servem dentro da estratégia global de seus criadores. Mas como poderia alguém tentar discutir isso, ignorando por completo a bibliografia básica sobre a origem, formação e métodos do poder global? Comparem o número assombroso de pessoas que opinam publicamente sobre aborto, casamento gay, quotas raciais, etc., com a míngua ou inexistência de leitores das obras aqui mencionadas, e terão uma idéia aproximada do abismo epistêmico que se abriu entre as nossas elites falantes e o mundo real. Não creio que fenômeno tão geral e profundo de ignorância dos fatores básicos que decidem os destinos de uma nação possa ser encontrado em qualquer outra época ou país. Ao eleger um semi-analfabeto para a presidência da República, o Brasil não fez senão oficializar um símbolo da sua opção radical e intransigente pelo desconhecimento da realidade.

The Politics of Heroin, de Alfred W. McCoy (1991), e Final Judgement, de Michael Collins Piper (1995) tratam do envolvimento de agentes dos serviços secretos americanos no tráfico de drogas. O enfoque é importante, mas escolhê-los como as obras mais representativas sobre a relação de poder global e narcotráfico é deformar o quadro com uma seletividade enviezada quase psicótica. Em 1993 a notável repórter do Reader’s Digest, Claire Sterling, já havia fornecido um retrato muito mais completo da situação no seu livro Thieves’ World, ao descrever a rápida arregimentação mundial das máfias dos diversos países sob o comando unificado russo. Só cidadãos muito atentos devem ter percebido, ao longo da última década, o fim das velhas guerras entre máfias internacionais. O fenômeno, inédito na História, mal foi comentado na grande mídia, mas sua importância não precisa ser enfatizada. A partir daí a expressão “crime organizado” passou a fazer mais sentido do que nunca. A internacional do crime repartiu o planeta em áreas e setores, dando uma estrutura racional à divisão do trabalho entre as quadrilhas maiores de delinqüentes nas várias regiões, mantendo em tudo uma ordem admirável e matando instantaneamente os rebeldes e recalcitrantes. Foi só isso que deu origem, por exemplo, à carreira espetacular do nosso Fernandinho Beira-Mar. O sujeito comprava armas russas no Líbano, trazia-as para o Paraguai, onde as trocava por duzentas toneladas anuais de cocaína vindas da Colômbia, as quais eram em seguida comercializadas no Brasil e nos EUA. Operações dessa complexidade, abrangendo quatro continentes, supõem uma estrita colaboração internacional que, é óbvio, não surgiu espontaneamente mas foi montada, a ferro e fogo, pela prepotência e habilidade dos russos, fazendo de Moscou a capital mundial do crime.

É claro, também, que isso não teria sido possível na base do puro improviso. Os russos preparavam-se para essa operação desde os anos 50, quando a KGB começou a treinar agentes para que se infiltrassem nas várias quadrilhas de narcotraficantes no Terceiro Mundo, na Europa ocidental e nos EUA. A idéia era dominar o mercado mundial, para criar uma multiplicidade de fontes locais de financiamento para os movimentos revolucionários, poupando ao governo soviético uma despesa considerável. Verdadeiras universidades do crime foram criadas em vários pontos do território soviético, elevando o narcotráfico às alturas de uma especialidade acadêmica. A operação, com base no testemunho direto de um de seus próprios articuladores principais, o general tcheco Jan Sejna, é descrita com minúcia no livro de Joseph D. Douglass, Red Cocaine: The Drugging of América And The West (1999), outro clássico imperdoavelmente omitido na lista de Alan B. Jones. Por volta de 1980 o sistema estava em pleno funcionamento. Sua implantação passou, é claro, pelo suborno e arregimentação de inumeráveis agentes e funcionários de diversos serviços secretos ocidentais, especialmente da CIA, o que se tornou ainda mais fácil quando, nas últimas semanas do governo Reagan, uma parte dos serviços dessa agência foi privatizada pelo mesmo presidente que se notabilizara como o demolidor máximo do “Império do Mal”, donde se conclui que os grandes homens também pisam no tomate. Foi a partir daí que começaram a pipocar os casos de envolvimento de agentes da CIA no narcotráfico internacional, fornecendo a McCoy e Piper o material para os seus dois livros. Estes tratam, portanto, só dos efeitos locais e parciais de um processo enormemente mais vasto e de raízes mais fundas.

Se fatos de tamanha envergadura não são quase nunca apresentados ou discutidos na “grande mídia”, deixando os povos portanto na posição de vítimas inermes de processos históricos invisíveis, também não é sem razão. O escritor russo Vladimir Bukovski, dissidente exilado que voltou à Rússia na condição de primeiro pesquisador não-soviético admitido nos Arquivos de Moscou, trouxe daí as provas de que praticamente todos os jornais da grande mídia “progressista” da Europa ocidental eram diretamente subsidiados pela KGB. O relato está no livro de Bukovski, Jugement à Moscou: Un Dissident Dans Les Archives du Kremlin (Paris, 1995). Quem não leu não sabe em que mundo vive, por mais que siga as lições de Alan B. Jones. Muitas das informações de Bukovski, acrescidas de outras ainda mais reveladoras, são confirmadas pelas duas obras igualmente indispensáveis escritas pelo historiador britânico Christopher Andrew em colaboração com o ex-agente da KGB Vasili Mitrokhin: The Sword And The Shield: The Mitrokhin Archive And The Secret History of the KGB (1999) e The World Was Going Our Way: The KGB And The Battle For The Third World (2005). Mitrokhin era o alto funcionário encarregado de fiscalizar a transferência dos documentos da KGB quando a organização mudou de prédio. Eram oito bilhões de dossiês, o maior arquivo de informações que já existiu no universo, o que explica que a mudança tenha levado dez anos, durante os quais Mitrokhin, planejando fugir para o Ocidente, copiou o que podia -- uma fração infinitesimal -- dos documentos mais importantes.

Por essas e outras é que me pareceu surpreendente que, no livro de Alan B. Jones, nominalmente incumbido de dar um panorama geral da estrutura de poder no mundo, a KGB só fosse mencionada duas vezes, de passagem, e a propósito de detalhes irrelevantes. Quem tome esse livro como guia básico para o conhecimento do tema ficará mesmo com a impressão de que o dinheiro anglo-americano é a “mão secreta” que move o mundo. Existem mãos secretas, é claro, mas são muitas e vivem se estapeando umas às outras, às vezes até a si próprias. Ninguém tem o controle hegemônico do processo histórico mundial, embora muitos busquem obtê-lo, não raro cometendo erros catastróficos que levam seus planos a resultados opostos aos pretendidos. Santo Agostinho dizia que os demônios têm orgasmos de prazer quando alguém exagera os seus poderes. Amadores incompreensivos, remexendo um tema que está infinitamente acima dos seus recursos intelectuais, fazem do estudo do poder secreto um verdadeiro sistema mitológico, ao passo que a historiografia acadêmica, em parte por ser quase toda dependente de subsídios que vêm das mesmas fundações bilionárias acima mencionadas, em parte por estar intoxicada por preconceitos ideológicos que enfatizam magicamente os fatores coletivos impessoais, em parte por lhe faltarem os instrumentos analíticos necessários para uma abordagem séria do fenômeno, acaba se dissolvendo em generalidades sociológicas e escamoteando a identidade dos agentes históricos concretos. (Tentei remediar essa situação nos meus cursos sobre “Quem é o sujeito da História?”, mas a sobrecarga de atividades jornalísticas e pedagógicas me impediu até hoje de dar um formato editorial aceitável a essas lições. Darei um resumo numa das próximas colunas.)

Um erro maior que se comete nessa área de estudos é hipertrofiar a importância do poder econômico. O dinheiro não é uma forma primária e essencial de poder: é um poder secundário e derivado, que depende da proteção de organizações legais ou ilegais investidas dos meios de matar. O poder empresarial e bancário pode dar origem a essas organizações, mas não pode controlá-las uma vez que elas adquiram vida própria, como aconteceu com a Ordem dos Assassinos, no Oriente Médio, ou com a KGB.

Omitida a KGB, o estudante fica persuadido de que os únicos centros de poder no mundo são o sistema bancário internacional e as “Sete Irmãs”, as maiores companhias de petróleo americanas. Engdahl, o primeirão da lista de Jones, chega a explicar todas as guerras do século XX como um efeito direto das decisões dessa elite. Mas essas decisões não bóiam sozinhas no ar, elas concorrem e se articulam com as de outras fontes de poder, de base não essencialmente econômica, entre as quais, é claro, a KHB. Para você fazer uma idéia das proporções aí envolvidas, basta saber que o maior empregador do mundo capitalista, o Walmart, tem um milhão e oitocentos mil empregados, seguido da China Petroleum com pouco mais de um milhão. Quantos funcionários ou agentes terceirizados pode a Standart Oil, por exemplo, liberar de suas funções na exploração e comercialização de petróleo para lhes delegar funções de espionagem, subversão e articulação política? A mesma pergunta vale para a Ford, o banco Rothschild, etc. Já a KGB, só na sua sede territorial, tinha quinhentos mil funcionários, e nenhum deles estava ocupado em perfurar poços de petróleo ou negociar empréstimos. Espalhados pelo mundo, os militantes do Partido Comunista, acionáveis a qualquer momento para operações clandestinas coordenadas de Moscou, colocavam à disposição da KGB não menos de trinta milhões de recrutas. Bancos e grandes empresas podem tentar manipular as situações por meio do dinheiro, mas nunca tiveram a seu serviço uma organização desse porte. A KGB, que era o centro e topo do governo soviético, como sua sucessora FSB é hoje na Rússia, foi simplesmente a maior força secreta que já existiu no mundo em qualquer época ou país. (As relações entre a KGB-FSB e a elite financeira ocidental são complexas e cheias de ambigüidades. Seu estudo constitui toda uma área à espera de maiores investigações.) Do ponto de vista financeiro, o orçamento da KGB-FSB era e é absolutamente ilimitado e livre de qualquer fiscalização externa, enquanto as grandes empresas ocidentais não têm um minuto de descanso sob o olhar suspicaz da mídia, dos políticos e do fisco. Fazer dos grandes banqueiros e empresas internacionais o centro único do poder mundial é elevar a desinformação às alturas de um culto religioso. Agora compare, por outro lado, a bibliografia sobre o poder econômico e sobre a KGB. Só para dar uma amostra, não existe um único livro sobre a atuação da KGB no Brasil, enquanto a produção editorial sobre a ação do establishment anglo-americano nesta parte do mundo superlota as bibliotecas universitárias. Análoga desproporção, apenas não tão acentuada, existe no mercado editorial americano e europeu. Afinal, a maior prova da eficácia de um poder secreto é seu sucesso em se manter secreto.


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